3.31.2005

Castração. Crime e Castigo.

Senta-se. Dobra as pernas, como de costume. Posição budista.
Liga o recém-comprado laptop.
Os olhos brilham, a espinha flexiona-se, reverbera como se respondesse a cada ruidinho que um sonho pudesse emitir.


Um sonho que fabrica sonhos. ( e assim por diante... espera... internamente. )

Eternas matryoskas russas para aqueles que sempre estão por desejar algo...
Caixinhas perfeitas dos mais variados tamanhos que ao serem abertas revelam outras caixinhas ainda mais perfeitas e interessantes do que a primeira. Cada qual com a sua surpresa. E o tamanho nesse caso deve ser inversamente proporcional à realização de. Algo. Maior que si própria.

Anna sempre está... A desejar... Algo.

A cama branca, enorme. Gigantesca para alguém que sente-se tão pequena.
Sozinha, na verdade. Solitária.
Foi uma opção. Mas opções não são necessariamente de todo voluntárias.
Há algo por trás. Há sempre algo a respeito do qual não se fala, não se comenta, mas que motiva.
Anna escreve vertiginosamente.
Vertiginosa.
Anna.


Tão pequena e abandonada em sua cama solitária, mas capaz de fazê-lo perder-se por entre suas vertigens.
Composta por milhões delas.
Ainda que pequena, é vertiginosa.


"Petite". Mas repleta de curvas delicadamente, milimetricamente desenhadas ao redor e dentro de si própria. Como uma ilustração art nouveau a tomar vida diante dos olhos de... Ninguém, talvez. Oculta sua grandiosidade por entre paredes de um branco hospitalar e debaixo de um edredom mais aconchegante do qualquer memória remota que possa ter do seio materno.

Há vertigem pelas costas de Anna.
E deve-se tomar muita cautela para não padecer de tontura e, por vezes, até mesmo um certo enjôo. Ao passear por suas costas. E espinha dorsal.


Anna escreve vertiginosamente para passar o tempo. Para esquecer as dores.
Ou para lembrá-las até. Mastigá-las. Remoê-las. Na ânsia de torná-las cada vez mais digeríveis, mais pastosas, mais fáceis de descer garganta abaixo ainda que lhe causem úlceras.
Anna não teme por suas úlceras. Teme, sim, pelas feridas que se formam na sua laringe e se espalham pelo céu de sua boca. Queimando. Incomodando. Impossibilitando-a de digerir coisas novas. Amontoando dores dentro de si. Dores não vomitadas, não expelidas. Dores somente sofridas, bem ali, no centro da sua garganta. No seu centro nervoso particular e secreto.


Incômodas. Como tosse engasgada.

Anna está deprimida.
Toma suas pílulas religiosamente. Pílulas brancas ( "duas, por favor "), pílulas rosas, comprimidos azuis.
Sente-se ligeiramente melhor. Menos passiva. Menos morta.


Escreve linhas e linhas e linhas, sem sair ainda de seu quarto. Porque ele lhe é uterino. E as pílulas ainda não fizeram efeito o suficiente para arrastá-la para fora de algo tão seu e tão capaz de agasalhar-lhe até seu âmago. Porque todo resto lhe parece inóspito.

Seria "quase perfeito" ( dentro das perspectivas e do laudo psiquiátrico ) se não fosse por um problema.
Remédios anti-depressivos mandam sua libido para o cacete. Ou melhor, para bem longe dele.


E não é que Anna não pense em sexo, não deseje sexo ( não só sexo. mas tudo relativo a este. e tudo relativo a sexo é praticamente... Tudo.).
Sempre foi libidinosa por natureza. Despudorada. E agora isso. Esse impeditivo químico de efeitos físicos desastrosos.

Mas está doente. Severamente doente. Portanto, continua a tomar as pílulas.

E diante do estado impassível de prostração em que se encontrava, que importa sua libido?

" Que importa minha libido?!?! Que importa minha libido é o caralho!!!!
Ou a total ausência deste. Porque meu caralho foi pro brejo e é foda...
E todos esses trocadilhos, e toda essa impotência que só me lembra da ausência de...
Porque é por isso que eu me guio... Pela ausência de...


Talvez por isso, a depressão. Devido à eterna insatisfação.

Eu li "Mrs. Dalloway" e chorei. E li / vi "The Hours" de Michael Cunningham. Eu me vi. Espelhada em Laura Brown. E eu não conseguia em momento algum culpá-la pelo abandono da família.

Minha avó fugiu de casa. Abandonou casa, marido, filhos pequenos, tudo. E foi embora... Atrás de um bloco de Carnaval. E seguiu... Folião após folião.
Até ter câncer de mama e morrer... Do coração.


Há castigo nisso? Punição? Sim, há. Desnecessária, castradora e injusta. Mas há.
Porque não é permitido viver como Laura Brown e não se corroer de culpa - ainda que socialmente imposta e não naturalmente válida - e não ser devastada por um câncer ou qualquer outra doença que lhe faça pagar em vida por pecados que você nem crê que os cometeu. Mas Alguém crê. Filhos da puta!

Eu não julgo minha avó. Eu respeito. Eu li "Casa de Boneca". E temi por isso...
E é como se eu fosse punida por todas estas histórias umbilicalmente conectadas. Por toda essa vertigem congênita. Por todo esse mal hereditário. Por ter tido durante muito tempo uma alma ávida, delirante, curiosa, intensa, insaciável.

Eu vi "As Horas" e chorei. Porque percebi que nunca seria feliz. Porque nunca seria satisfeita. A insatisfação persegue aqueles que abundam desejo. Transbordam.
E por isso, sou punida. Com essas merdas dessas pílulas castradoras. Que diminuem em muito uma parte do meu desejo, mas cujo efeito é só aumentar a minha insatisfação.


Masturbei-me três vezes hoje. Seguidas.
Nada. Não sinto nada.
Tranco-me dentro de casa nessa vida celibatária por pura falta de interesse. Em geral. E era suposto que eu me sentisse melhor.

Normalmente me sinto, mas hoje... Não dá.

Sinto-me impotente, castrada, insatisfeita e insuficiente em mim mesma. Com o caralho cortado, partido. Flácido e estupefacto diante da sua total impotência. Eu e meu caralho caído. E as pílulas rosas, brancas e comprimidos azuis.

Eu escrevo. Porque não gozo. E compenso minha frustração com o que me dá prazer. No que ainda me é possível. E eu me sinto punida! Porque nesse exato momento Deus é um filho-da-puta machista. Que fez das mulheres esses seres sensíveis e fez de determinadas mulheres seres ainda mais sensíveis, e exatamente por isso, por mais contraditório que pareça, fortes. Seres que reverberam ao menor dos estímulos. Porque era assim que eu era. ERA! E é como se agora eu estivesse sendo punida por ter gozado demais, por ser sensível demais, por ser artista demais. Por ter ousado no campo do não-possível. Não-permitido. Restrito. E eu nem mando Ele se foder porque nesse exato momento eu quero mais é que o pau Dele apodreça!

( suspiro )

Frustrada. Visivelmente. ( e de nada adianta... )
E inversamente... Reverberando em todos os meus outros sentidos possíveis e imagináveis. Criando peças, livros, colunas, artigos, roupas, quadros, poemas.
Todos fálicos.

Orientados pela ausência de ....
Ausência intrínseca, interna. A pior das ausências..."


Anna larga o laptop. Dirige-se à cozinha disposta a esmurrar seu analista.
Não que ele viva em sua cozinha, mas antes de esmurrar alguém é sempre recomendável que se tome um copo d'água.
Dirige-se penosamente ao filtro elétrico. Toma um copo d`água.
Len ta men te
Que escorre vagarosamente por sua garganta travada. Inflamada.
Inflamação abafada por uma golada d'agua e quatro comprimidos.


Volta ao quarto.
Apaga a luz.

Coloca "Felt Mountain" no Cd player. Volume baixo.
Puxa o edredom para si.

Isola-se. Mais uma vez.




( e deixa para trás um texto inconcluso. perfeitamente de acordo com a inconclusão emocional na qual se encontra agora.
sempre? ... )



..................................................................................................................



"Brown paper bag makes for a hat
When it rains on
Your head mate
Cheers for that."

"I'm super brain.
That's how they made me."



( lágrimas. abundantes. em cascata. )



- respectivamente "Paper Bag" e "Utopia" do álbum "Felt Mountain", do Goldfrapp - que toca incessantemente, reverberando de modo infindável espinha abaixo de Anna - que não pode nem chegar perto de "Black Cherry", por motivos óbvios para os que conhecem a banda.


6 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Como já dizia meu Dr. Médico-Analista-Bruxo-Curandeiro particular: "Pare de tomar a píílulaaaa...". Aliás, na verdade ele dizia: "Diminua a dose da sua píílulaaaa...".
É. Era isso que ele me dizia. Juro!!

1:55 AM  
Anonymous Anônimo said...

: )
Muito obrigada Sparrow... Mas talvez este seja um bom momento para eu interagir com meus poucos leitores e alertá-los de que...
Eu não sou a Anna! Nem a Elisa, nem a Alaíde, nem a Mariana, etc.
Eu até posso ser, mas assim, em fragmentos... Pretéritos, presentes ou futuros. Nunca se sabe. E a graça é essa mesma: não saber...
Até pq. Vou dar duas dicas somentes: meu quarto não é branco hospitalar e je ne suis pas petite, mignon, quem me conhece, sabe.

E eu necessito da liberdade poética para ser e não ser todas as amphisbaenas que meu corpo suporta manter. E já alerto: são MUITAS!

E conselhos médicos não podem/devem ser dados por não-médicos. É crime! Mas obrigada anyway Sparrow... A intenção foi das melhores, eu sei...Mas vc sabe... A Anna não pode obedecer! ;) Ela está dormindo... E ela não lê esse blog. Aliás, ela não lê blogs.

E pronto. Muita loucura para um post só!
Voltem sempre! : )

11:34 AM  
Anonymous Anônimo said...

Assim... Eu estava falando com a Anna, sabe... Mas tudo bem.
E, sabe, eu só estava repetindo o que o meu médico me disse. Eu tive um problema parecido, um dia.

Mas enfim. Acho que já estou me intrometendo demais num blog estranho... Me desculpe.

5:50 PM  
Anonymous Anônimo said...

Anna me pareceu frígida. Enfim, delirei no texto. Adorável.

9:20 PM  
Blogger The Collector said...

AMEI...
preciso dizer mais??? HAHAHAHAHA

sério... e Goldfrapp...

ai ai...



e entendo o que Anna está passando...
as vezes EU me sinto assim... sem libido...


o texto está na medida certa... nem pesado demais, nem leve demais para o tema...

beijos

8:22 PM  
Anonymous Anônimo said...

A nós, homens mais condenados que as mulheres sensíveis, aqueles que se apaixonam por essas mulheres ultra sensíveis, só nos resta fazer como o marido de Laura Brown. Sentar na estação de trem, abaixar a cabeça e ceder. E chorar, com uma expressão de quem abre mão de tudo porque ama infinitamente.

T.P.

2:10 PM  

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