10.26.2005

Nauseabunda

" SEGUNDA-FEIRA, 29 DE JANEIRO DE 1932.
ACONTECEU-ME qualquer coisa; já não posso duvidar. Qualquer coisa que veio à maneira duma doença, não como uma vulgar certeza, não como uma evidência; que se instalou sorrateiramente, pouco a pouco. A dada altura senti-me um tanto esquisito, algo incomodado, mais nada. Tomado o seu lugar, essa coisa não mexeu mais, ficou como estava, e pude assim convencer-me de que não tinha nada, que tinha sido um rebate falso. Mas eis que o mal começa a propagar-se.


( ... )


Nas minhas mãos, por exemplo, há qualquer coisa de novo, certa maneira de agarrar no cachimbo ou no garfo. Ou então é o garfo que tem agora uma maneira diferente de se deixar agarrar; não sei. Há bocadinho, quando ia entrar no meu quarto, detive-me repentinamente, porque senti na mão um objecto frio que me chamava a atenção, como se possuísse uma espécie de personalidade. Abri a mão, olhei: era simplesmente o fecho da porta.

( ... )


Nas ruas há também uma quantidade de ruídos equívocos que perpassa.
Produziu-se pois uma mudança durante estas últimas semanas. Mas onde? uma mudança que não se fixa em sítio nenhum. Fui eu que mudei? Se não fui, então foi este quarto, esta cidade, esta natureza; é preciso escolher.


Acho que fui eu que mudei: é a solução mais simples. E mais desagradável também. Mas, enfim, tenho de reconhecer que sou sujeito a estas transformações súbitas. Sucede que só muito raras vezes penso; assim uma infinidade de pequenas metamorfoses vai-se acumulando em mim sem eu dar por isso. e depois, um belo dia, produz-se uma verdadeira revolução. Foi o que deu à minha vida estes solavancos, este aspecto incoerente.


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Que estava eu ali a fazer? Porque estava a falar com aquelas pessoas? Porque estava vestido duma maneira tão exótica? Tinha morrido a paixão que me submergia e arrastara durante anos; naquela altura sentia-me vazio. Mas não era isso o pior: defronte de mim, instalada com uma espécie de indolência, havia uma ideia volumosa e insípida. Não sei exactamente o que era, mas não podia olhá-la, a tal ponto ela me repugnava.

( ... )


Se não me engano, se todos os sinais que se vão acumulando são precursores duma nova transformação brutal da minha vida, então tenho medo. Não que a minha vida seja rica, importante, nem preciosa. Mas tenho medo do que vai nascer, apoderar-se de mim - e arrastar-me... arrastar-me para onde? Vou ter outra vez de partir, deixar tudo em meio, as minhas pesquisas, o meu livro? Voltarei a acordar daqui a alguns meses, daqui a alguns anos, derreado, desiludido, no meio de novas ruínas? Queria ver claramente o que se passa em mim, antes que seja tarde de mais.


TERÇA-FEIRA, 30 DE JANEIRO.
Nada de novo."



* "A Náusea" de Jean-Paul Sartre.

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Foi ainda hoje que observei Julia atravessar a parede envidraçada e misturar-se aos estilhaços de vidros espalhados pelo chão.

O quanto de Julia há em mim?

É exatamente por isso que não há imagem.
Não há imagem.